A prescrição de métodos auxiliares de diagnóstico (como é o caso dos testes de detecção de infecção viral), bem como o diagnóstico quanto à existência de uma doença, relativamente a toda e qualquer pessoa, é matéria que o nosso ordenamento jurídico reserva à competência exclusiva de um médico, sendo certo que este, no aconselhamento do seu doente, deverá sempre tentar obter o seu consentimento esclarecido. Acórdão do 11-Nov-2020.
O texto que aqui vos deixo hoje não me pertence. Porém, a sua importância é enorma e como, mais uma vez, reforça tudo o que vos tenho dito até aqui, achei conveniente publicá-lo.
A Autora, Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e Professora na Universidade Nova de Lisboa. O seu impressionante Currículo é abalizado internacionalmente. As suas palavras merecem ser lidas.
"Diagnóstico Posted on November 19, 2020
O Público tem dado a entender em grande destaque que as duas juízas do Acórdão da Relação que determina a ilegalidade da quarentena dos Açores não saberiam ler artigos científicos, e que estariam a ser alvo de “procedimentos internos”. O Conselho de Magistratura já deixou claro, em resposta, que vai ser debatido o assunto mas não há nenhum processo disciplinar ou outro em curso. Este Acórdão porém é de uma importância central, para todos nós, mas sobretudo para os médicos. Porque o que ele diz é que só os tribunais podem dar ordem de prisão, enfim, o elementar de qualquer democracia. E que – sublinho – só os médicos podem fazer diagnóstico de uma doença. Um laboratório não se substitui a um médico, nem a máquina a uma prática clínica.
Os testes, como o PCR, são, como o diz o nome, “um meio auxiliar de diagnóstico”, mas é ao médico que cabe fazer o mesmo. Isto tem muita importância para a pandemia, o intervalo de confiança do PCR é inferior ao de uma sondagem eleitoral, e sobretudo demonstra a presença, com grande margem de erro, do vírus, mas não da doença.
Porém, o mais importante para mim é que, com os anos, os médicos têm sido expropriados do direito ao diagnóstico porque, por falta de tempo nas consultas, do esboroar da relação médico-doente, da proliferação de protocolos padronizados e possíveis processos judiciais, do trabalho à peça, da quantificação dos actos médicos, cada vez mais o diagnóstico fica nas mãos de uma máquina e não do saber clínico.
O sentido revolucionário deste acórdão é dizer que não, nada substitui o médico no papel de diagnosticar a doença. Não me parece portanto coincidência que o ex-bastonário e dono de uma rede de laboratórios Germano de Sousa, que segundo o mesmo jornal lucrou dezenas de milhões de euros em plena pandemia (nunca percebi porque os laboratórios privados não foram requisitados, já que estamos em estado de emergência) tenha usado palavras no mesmo jornal contra as juízes que não só procuraram contradizer o Acórdão, o que estava no seu direito porque sendo dono do laboratório pode ter na mesma razão e magistrados não são deuses, mas foi mais longe, e num ataque ad hominem tentou denegrir as magistradas, que aos seus olhos são quase analfabetas, que não conseguem interpretar artigos científicos.
O Público teve pouco cuidado e conseguiu fazer todas as gordas do assunto na mesma linha, umas tontas, enfim que se aventuraram pelo campo da epidemologia e caíram no ridículo, é o sentido geral das notícias. Ora, é fácil perceber que se um teste pode ter até 30% de erros há dezenas de milhar falsos. Mesmo que só tenha 5% de dados errados, percentagem que Germano de Sousa aceita no mesmo jornal, continuam milhares falsos, porque o universo é grande – é fazer as contas, já dizia Guterres. Mas isso, reitero, para mim não é o central deste Acórdão.
O central é como as magistradas devolveram aos médicos, num importante acórdão, que creio fará história, o sentido real da sua profissão. Numa era em que a automação da medicina ameaça transformar esta profissão numa linha de montagem, este acórdão é um imenso progresso – um “travão”, no campo das ideias, na proletarização dos médicos."
Não necessita de comentários. Tudo o que tenho dito desde há meses está gravado na História da Humanidade.